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Queremos ter uma vida sem medo

    Eis que faço uma coisa nova. Agora mesmo ela está saindo à luz. Será que não o percebem? Eis que porei um caminho no deserto e rios nos lugares áridos – Isaías 43.19

     

    “Cada negro que for, mas um negro virá

    Para lutar com sangue ou não

    Com uma canção, também se luta irmão”.

    (Wilson Simonal. Música: Tributo a Martin Luther King)

     

    Tinha acabado a fralda. Era só eu e meu filho em casa naquela manhã. Há uma farmácia a poucos metros da nossa casa. Então pensei em ir até lá, na hora da soneca dele e comprar. Não ficaria mais do que cinco minutos fora de casa.

     

    Inesperadamente, fui invadido por um pensamento estranho. Pensei, e se eu for à farmácia e, por um acaso, for parado pela polícia? Posso demorar bem mais que cinco minutos, ele pode acordar e qual seria a reação dele?

     

    E se justo nessa ida à farmácia, eu fosse parado pela polícia e nessa parada pela polícia, eu fosse levado a uma delegacia para averiguação? O que aconteceria com meu filho, qual seria a sua reação? Choraria? Tentaria sair do nosso apartamento? O que eu faria? Será que teria a possibilidade de avisar alguém? Será que seria ouvido?

     

    Talvez muitos ao lerem isso, possam pensar: por que alguém pensaria algo do tipo? Parece um completo absurdo. Eu também acho.

     

    Esses pensamentos que não levaram mais que alguns segundos, foram seguidos de formigamento nas pernas e de uma fraqueza paralisante. Fiquei angustiado.

     

    Lembrei que tive essa sensação apenas uma vez na vida, e foi bem mais intensa.

     

    Senti isso anos atrás, ao cruzar com a polícia. Minhas pernas travaram. Perdi a força. Por sorte tinha um poste na calçada e o abracei para me manter em pé. Ao avistar a viatura reduzindo a velocidade, olhei para eles com ódio. As lágrimas escorriam pelo meu rosto. Eles pararam, olharam um para o outro dentro do carro, olharam para mim espantados, e foram embora.

     

    Isso aconteceu um dia após eu e um amigo, termos passado algumas horas em uma delegacia. Saímos para procurar emprego e acabamos presos, em uma delegacia sem nenhuma justificativa. Fomos levados para averiguação.

     

    Fiquei revoltado. Achei injusto. Queria vingança! Tinha uma pasta na mão, cheia de currículos. Meu crime foi ser um jovem negro, muito longe de casa.

     

    Ouvi uma frase em uma palestra há poucos dias, que me chamou atenção. “A dor que não é transformada, é transferida”. Percebi que mesmo muitos anos depois, a minha dor, ainda estava lá.

     

    A cena do assassinado de George Floyd, nos Estados Unidos, em maio de 2020, rodou o mundo. Nela, vemos um policial branco, com o joelho sobre o pescoço de um homem negro, que pede socorro, mas não é atendido.

     

    Mesmo com o desfecho trágico de Floyd, essa cena passou a ser repetida como nunca no Brasil. Vemos frequentemente na mídia, policiais usando este mesmo método, condenado em todo o mundo, o de se ajoelhar sobre o pescoço de uma pessoa para imobilizá-la.

     

    Infelizmente tornou-se comum, vermos pessoas negras, homens e mulheres, sendo imobilizados dessa forma por policiais.

     

    No início do mês de novembro, mês que em especial refletimos sobre a questão racial no Brasil, e comemoramos o Dia da Consciência Negra, fomos surpreendidos por outra triste imagem.

     

    Na cidade de Itabira, em Minas Gerais, uma mulher com uma criança no colo, é imobilizada por policiais, que a deitam no chão, e fazem o gesto simbólico, de se ajoelhar sobre o pescoço dela. O filho mais velho, uma criança, tenta defender a mãe e outras pessoas que estavam passando pelo local, também tentam intervir.

    Por que é que temos que viver assim? Como é pesado esse fardo.

    “Vou lhe dizer o que é liberdade. Liberdade é ausência de medo”.

    Essa frase da cantora e ativista americana Nina Simone, nos mostra que a luta por liberdade, ainda é necessária.

     

    Li esta frase no livro Uma leitura negra – Interpretação bíblica como exercício de esperança, de Esau McCaulley, teólogo, professor e escritor. Nele, o autor traz uma importante contribuição para a Igreja brasileira, de como podemos lidar com os problemas raciais em nosso país, mesmo tendo sido escrito originalmente, para falar ao contexto norte-americano.

     

    Em um dos capítulos do livro, o autor propõe uma “teologia cristã do policiamento”. O que a fé cristã teria a dizer sobre esse tema tão importante? Muito, de acordo com Esau.

     

    Para ele, na Bíblia, em especial em Romanos 13.1-7, texto que é estudado com detalhe nesse capítulo, vemos qual deveria ser a verdadeira função das forças policiais, dos governos e da Igreja. Esse trecho exemplifica bem isso.

     

    “Enquanto Paulo falou do poder do Estado e da espada, João Batista voltou o olhar para os soldados como indivíduos. Não os exortou a realizar grandes feitos de bravura física, mas sim feitos de virtude heroica. Lembrou-os de que o poder não precisa transformá-los em malfeitores que exploravam outros. Podiam ser defensores dos fracos. Uma teologia cristã do policiamento volta a atenção também para os policiais e exige que reconheçam a responsabilidade tremenda e o potencial do trabalho que realizam. Se nos lançarmos nessa empreitada de exortar os policiais e o Estado a serem o que Deus os chamou a ser, talvez as esperanças dos negros no tocante à polícia do nosso país se realizam” (p. 51).

     

    Essa leitura, me fez fazer perguntas sobre a nossa realidade. Qual tem sido a política de policiamento incentivada pelo governo do nosso país?

    Fazemos nosso papel de Igreja, e lembramos o Estado que ele não é divino e nem infalível e que seu papel é administrar aquilo que pertence a Deus?

    A questão do policiamento é apenas um dos sérios problemas enfrentados por homens e mulheres de descendência africana nesse país.

     

    Como Igreja, temos o dever de contribuir para a construção de uma sociedade onde as pessoas possam viver sem medo.

     

    Amar o próximo é reconhecer a sua humanidade. E Jesus disse que amar o próximo, é o segundo maior mandamento.

     

    Por que é comemorado o “Dia da Consciência Negra”? Porque a luta pela liberdade de viver, e viver sem medo, continua.

     

    E nós cristãos, temos um papel fundamental nessa luta. Somos chamados a ajudar a construir uma nova cidade, que espelha os valores do “reino de Deus”, que já está entre nós, mas não em sua plenitude.

     

    Existem grandes questões em nossa sociedade e em nosso tempo, que exigem grandes respostas. Temos muito a contribuir.

    A fé cristã em sua essência, tem como descrito no livro de Efésios, o rosto de uma nova humanidade. Onde todos são irmãos e irmãs, como era o projeto original de Deus, descrito no começo da nossa Bíblia, no livro de Gênesis.

    Será que nós como metodistas temos sido voz profética? Parafraseando John Wesley, falado contra todas as “terríveis vilanias” do nosso tempo?

     

    Temos enfrentado o pecado do racismo em nosso país, em nossas igrejas e em nossas famílias?

     

    Quando fui gentilmente convidado a escrever esse texto, condicionado pela minha formação de jornalista, pensei em buscar dados e estatísticas que retratassem a difícil vida da maioria da população brasileira: homens e mulheres, negros e negras. Mas resisti a esse primeiro impulso, e contrariando minhas inclinações, decidi contar a minha história.

     

    Sei que dados e estatísticas não ajudam a sensibilizar aqueles que ainda não compreenderam a urgência do tema, e que não se cansam de falar todo o ano nessa data: – “não deveria ser Dia da Consciência Negra, deveria ser Dia da Consciência Humana”. Sei que tão pouco a minha história vai sensibilizar essas pessoas. Só Deus com Teu Santo Espírito e Seu martelo que “esmiúça a penha”, pode fazer isso.

    Como eu gostaria que a minha experiência não fosse tão comum. Queria ser uma exceção. Como eu gostaria que o meu medo, não fosse um medo ancestral, passado de geração para geração.

    Que meu filho e aqueles que ainda virão, não sintam mais esse tipo de medo. Decidi tratar essa dor aqui e agora, para isso. Para que ela não seja mais transferida.

     

    Antes que alguns pensem, não sou contra policiais e sei da importância do trabalho deles para a sociedade. Respeito e admiro todos aqueles e aquelas que trabalham de forma honesta e humana.

     

    Como disse anteriormente, o problema do policiamento é mais um dos problemas enfrentados pela população negra em nosso país.

     

    A fome voltou a assolar o Brasil. Desemprego, falta de moradia, desigualdade no acesso a saúde, sistema carcerário falho e que não regenera, desigualdade de oportunidade e de representatividade, na política e até entre a nossa liderança religiosa.

    Esses problemas não são apenas da população negra. Eles dizem respeito a todo povo brasileiro. Precisamos resolvê-los juntos.

    Há de se falar ainda, da questão da mulher negra em nossa sociedade. Esta que figura entre as mais marginalizadas em nossa sociedade, juntamente com as mulheres indígenas.

     

    Vimos disparar o índice de violência contra a mulher durante a pandemia. Que espaço esse problema tem ocupado na agenda da Igreja? Em nossos sermões? O quanto gastamos do nosso orçamento para combater essa crueldade?

     

    O que podemos fazer diante de tantos problemas sociais? Conforme a força do nosso braço, que contribuição poderemos dar?

     

    Que o Senhor nos abençoe e nos mostre, qual é a obra que Ele está fazendo no mundo, e como nós como Igreja e como indivíduos podemos colaborar.

    Que possamos perceber o “algo novo” que nosso Deus está fazendo nesse deserto de caminhos difíceis e secos.

    E, juntos, participar dessa obra, celebrar e adorar o nosso Deus, por todo o bem que Ele tem feito.

     

    Jorge Oliveira

    Jornalista e membro da Igreja Metodista em Jardim Colorado

     

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    Ministério Regional AA-AFRO

    O Ministério Regional AA-Afro – Ações Afirmativas Afrodescendentes da Igreja Metodista na 3a Região Eclesiástica, vem promovendo juntamente com parceiros e seus membros atividades para o enfrentamento do pecado do racismo bem como para o desenvolvimento de uma cultura antirracista. Temos muitas realidades em nossa sociedade. Como Igreja profética, não podemos aceitar que pessoas sejam discriminadas pela cor da pele. E à luz do que nos traz 1 Coríntios 12.26,27, se temos membros sofrendo no corpo, todo o corpo está sofrendo junto com eles. Acabou o mês de novembro, mês voltado à consciência negra, mas esperamos que esta mensagem ecoe durante todo o ano para que possamos juntos combater o pecado estrutural do racismo em nossa sociedade.

     

    Paulo Roberto Lopes de Almeida Junior

    Coordenador Regional – Ministério AA-Afro

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